Carol e a recusa pelo maneirismo

Torna-se evidente, ao experienciar alguns de seus filmes, que a maior das qualidades do cineasta americano Todd Haynes é partir de contextos teoricamente simples, lidar com elementos-base da encenação cinematográfica, para assim elucidar questões grandiloquentes, meditar sobre relações abrangentes e universais. A obra de Haynes assume uma recusa ativa pelo artifício, encontra no minimalismo um caminho formal absolutamente possibilitador, dentro de uma operação tão paradoxal quanto poderosa em suas articulações. É um cinema clássico que, inegavelmente, quer reafirmar sua posição na contemporaneidade.


Safe, filme dirigido por Haynes lançado em 1995, lança mão de toda essa economia encenativa para meditar basicamente sobre toda a sociedade moderna no século 21. Se o filme de 95 se concretiza em um comentário sociocultural bastante definidor, temos em Carol (2015), lançado duas décadas depois, uma evolução natural para a filmografia de Haynes, já que o filme acaba sendo um comentário sobre o cinema em si, sobre toda uma tradição cinematográfica implícita, sobre um resgate dessa tradição através de seus encantamentos primordiais. Ou seja, o cineasta vai ainda mais longe em suas aspirações: do comentário sobre o estado do mundo para um comentário sobre, essencialmente, todo o cinema.

 

 

Todd Haynes conversa com Cate Blanchett no set de Carol (2015)

Muito se discute, ao se falar da obra de Haynes, sobre a maneira como o diretor se apropria do melodrama hollywoodiano, sobretudo dos filmes de Douglas Sirk (o que fica ainda mais evidente com o seu Far From Heaven, de 2002). Mas em Carol existe um passo além, à medida que o longa de 2015 consegue transcender suas referências imediatas para atingir efeitos mais do que universais. Essa relação referencial está muito presente em um primeiro momento, principalmente porque Haynes decide não fazer um filme anacrônico. Desde a caracterização geral, toda a reconstituição de época — o figurino, os costumes, o próprio fato do filme ter sido filmado em 16mm — até, e ainda mais importante, a abordagem formal, tudo responde a uma herança histórica que está sendo reverenciada.

 

E mesmo com esses fatores, mesmo reverenciando toda uma iconografia de forma mais direta, o filme faz questão de se concretizar na surdina. É como se, mesmo se tratando de uma obra em certa medida reverencial, Haynes queira resguardar seus apelos ao que existe de mais essencial, para assim ir articulando todo o seu poderio minimalista. Todo esse movimento, acaba servindo de síntese para a ideia de cinema de Haynes, pelo menos nessa linha traçada entre Safe e Carol. Ir do econômico ao grandioso, do clássico ao contemporâneo, da pessoalidade de uma história intimista (Julianne Moore enfrentando uma doença em Safe, o amor entre duas mulheres, no caso de Carol) até a universalidade.


Eu até diria que Carol é um filme anti-maneirista. Quantos outros diretores não pensariam em, simplesmente, “atualizar” o material sirkiano no texto do filme em uma abordagem artificial, maneirista, expondo os apelos mais facilmente identificáveis com uma noção de contemporaneidade? Se por um lado Haynes quer sim replicar todo um aparato nostálgico do cinema norte-americano, por outro ele nunca enuncia isso. Ele vai ainda mais longe, já que leva o filme ao que existe de mais elementar no próprio cinema.

 

Ou seja, não é um mero trabalho de atualização, do Sirk ou de quem quer que seja, mas a suspensão de características base de seus modelos. Se uma das coisas que marca o relacionamento dos protagonistas em um filme como "Tudo o que o Céu Permite" é a maneira com que Sirk estabelece seus cenários, através de uma espécie de mitificação hiper estilizada dos seus espaços, característica que deflagra de forma evidente uma concepção melodramática, Haynes decide ir por um caminho ainda mais metódico e sutil.

 

 

"Tudo o que o Céu Permite" (1955) de Douglas Sirk
 

É como um filme fora de seu tempo, que reconhece e tem plena noção de que está fora de seu tempo. Que reconhece o maneirismo e a atualização como não-possibilidades dentro de um escopo cinematográfico contemporâneo. E a “solução” de Haynes para isso é retornar ao que existe de mais essencial. Cada toque, cada olhar, tudo resiste como se fossem marcas cinematográficas impregnadas no tempo, que para sempre remontam ao mais universal de todos os sentimentos.


Provavelmente é um dos filmes mais importantes dos últimos tempos porque transforma essa sua vocação narrativa em um mote francamente conceitual. Ele se permite dialogar com uma dimensão essencial do cinema, enquanto, em um movimento quase paradoxal, se faz autenticamente vanguardista em uma predisposição que recusa o maneirismo, que não almeja um caminho simplesmente reverencial, mas que existe apenas para nos relembrar de algo que sempre pertenceu aos nossos tempos. 

 

 

Um dos momentos mais definidores de Carol (2015)

Mesmo com todas as questões que as personagem de Rooney Mara e Cate Blanchett tem que enfrentar, principalmente com os personagens masculinos — e talvez tenha-se aí, o lado mais subversivo na abordagem de Haynes, já que o masculino se apresenta apenas como elemento incongruente no percurso traçado pelas duas — Haynes consegue encontrar, nas duas sequências finais, e como em um milagre do cotidiano, a maior das míticas do cinema na fugacidade de um toque no ombro, naquele tempo suspendido em que Rooney Mara é atormentada pela indecisão ao ver Carol indo embora, momentos que ao mesmo tempo que estão a uma ação de serem mitificados pelo cinema, estão a alguns segundos de um fim definitivo. Finalmente, tudo é resolvido em um olhar de Blanchett direcionado para a personagem de Rooney Mara, que ao mesmo tempo encara a câmera diretamente, assim eternizando esse simples gesto como a potência mais inegavelmente atemporal da história do cinema.







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