Expor o Artifício


O cinema de M. Night Shyamalan sempre preza por uma ingenuidade fantástica. A cada nova iteração de sua obra, o diretor americano de ascendência indiana reformula a própria abordagem, seja ao tratar de diferentes gêneros — passando mais notavelmente pelo horror, mas também pela ficção científica, pelo filme de catástrofe, e até pelo melodrama com veias calcadas no cinema oriental — ou de forma menos evidente, através de escolhas formais que modulam e sintetizam os mundos criados por M. Night, e de forma inversamente proporcional, preservando um impacto único e poderoso em cada um de seus filmes. Em Tempo (2021), ou Old, as coisas ficam um pouco diferentes. As decisões estéticas de Shyamalan, ao mesmo tempo que manifestam um poderoso acordo entre o pacto ficcional entre cineasta e espectador, guardam nos momentos finais do longa a cartada mais definidora da obra, ao expor toda a engenharia formal do diretor com uma frontalidade corajosa. Pela primeira vez em sua cinegrafia, a fantasia não é mais um refúgio, como fora em muitos de seus outros longas, mas uma maldição sendo exorcizada a plenos pulmões para os espectadores presentes na sala de cinema.


É um filme que se limita justamente para extrair disso várias possibilidades dramáticas, para evocar diversas chaves do cinema de terror sem medo de ser feliz. A ambientação na praia confere uma luminosidade mais que elucidativa para as intenções do cineasta (o que remete ao seu Fim dos Tempos, ainda que este percorra uma direção bem diferente no trato com o gênero) já que caracteriza o oposto de um cinema que busca atuar apenas na abstração. O diretor dilata a duração das cenas em longos planos sequências, com travellings passeando pelo espaço da praia, enquanto a emanação fantástica que ocorre ali (a perturbação temporal) confere toda uma gama de possibilidades formais para serem aproveitadas. Desde tensões raciais encabeçadas pelo médico vivido por Rufus Sewell, até os efeitos provocados pelo envelhecimento acelerado das crianças, que acaba tendo um efeito mais imediato, tudo isso não surge só como motes meramente conceituais, mas abrem portas para resoluções visuais muito criativas. Night, como de praxe, não apenas se utiliza das patologias de seus personagens como adereço para a confluência dramática — uma suposta jornada de superação — porém as integra em toda a concepção estilística do filme.


Todo o formalismo do cineasta, se antes tinha uma preocupação com uma delicadeza quase mística, que incorporava uma decupagem altamente elegante com a materialidade metafísica dos objetos em cena (Corpo Fechado) aqui se transforma em uma busca invariavelmente radical por estímulos. Até dá para dizer que Tempo é o trabalho mais experimental do diretor, já que potencializa formalmente a emergência das situações provocadas pelo dispositivo em um dinamismo que preza pelo estímulo, onde reina o constante movimento e a constante redescoberta do mesmo espaço e dos mesmos personagens. O longa de Night se renova de maneira poderosa, mesmo partindo de poucos elementos. Elementos brutos, que vão evoluindo e caracterizando uma dinâmica alucinada bastante específica.

 

Esse maquinário estético que Shyamalan se dispõe a executar, ao passo que se integra à narrativa proposta com uma fluidez bastante autêntica, também tem seus manejos plenamente evidenciados em cada nova exploração daquele cenário limitado. Ou seja, o cineasta integra cada particularidade daquele mundo na abordagem visual de forma orgânica, mas por outro lado toda a presença das decisões estéticas articuladas na obra tem um peso particular, que funciona por si só. Me parece ser talvez o único filme do diretor que busca uma espécie de auto evidência, principalmente da decupagem e dos movimentos de câmera — tudo absolutamente fantástico — sem falar nas atuações, destaque especial para um Alex Wolff inspiradíssimo. Talvez a obra funcione como uma espécie de exibicionismo particular, coisa que, devido ao apreço de seu criador pelo presente, nunca cai em um exercício virtuoso barato. Night nunca deixa de acreditar em uma noção de comunidade e altruísmo, mesmo que sejam ideias momentâneas. Uma das cenas próximas ao final demonstra isso muito bem, quando as “crianças” — já adultas — decidem montar um castelo de areia, mesmo sabendo que isso iria custar muito tempo de suas vidas. É, também, um filme sobre encontrar um escape na efemeridade da fabulação, e finalmente, como a virada no final do longa anuncia com todas as letras, confrontar a maior das maldições exteriores ao isolamento: a própria sociedade contemporânea.


Mesmo a presença do personagem de Shyamalan como uma espécie de observador — que de tempos em tempos surge como um ponto abstrato acima dos personagens — é um indicador metalinguístico bastante evidente. É ali, no ponto em que é revelada a sua figura, que o dispositivo se assume em toda a sua artificialidade. O espaço que manifesta a fantasia vira nada mais que um teste clínico, os personagens — cada um com sua particularidade, questão pessoal, preconceito pessoal — meros peões em um jogo institucional. Se formos parar para pensar, é um momento bastante caricato de auto reflexão: o personagem interpretado pelo próprio diretor do filme, levando os resultados do grande “experimento” para os “cientistas do mal” (aqui Shya zomba da racionalização em relação ao fantástico, como faz em segmentos na própria praia, em que os personagens tentam a todo custo “explicar” os fenômenos ali vividos) em prol de um suposto “bem coletivo” ambíguo. 


Para um cara que durante toda a sua carreira foi ridicularizado por simplesmente resgatar uma inocência há muito perdida, faz sentido que nessa altura do campeonato M. Night encontre como resultado final para o seu mundo não o refúgio da fantasia, mas sua contaminação inevitável por uma maldição contemporânea: os cinismos que desprezam um componente fabular de superação para recorrer à inércia do real. A desestabilização do refúgio, do espaço fantástico como dispositivo, não é, exatamente, uma novidade para Manoj. O desfecho de seu A Vila, se assemelha muito à desconstrução exposta nos minutos finais de Tempo, já que o filme de 2004 também evidencia uma certa contaminação da sociedade, encontrando no espaço da vila uma espécie de porto seguro rodeado por uma capa de misticismo. Mas enquanto a pequena população que existe na vila é preservada — apenas a personagem de Bryce Dallas Howard consegue penetrar a “realidade” — em Tempo esse refúgio não existe mais após os minutos finais. Na verdade, ele até existe, mas apenas nos momentos em que tivemos a oportunidade de presenciar, em todo o seu vigor, a fantasia, a magia dos fenômenos que ocorriam alguns minutos antes na sala de cinema.


Se Tempo é um filme, ultimamente, sobre regozijar do presente, faz sentido que o longa-metragem do indiano funcione tanto como uma espécie de auto paródia que deflagra uma desistência pessimista de seus ideais, enquanto que milagrosamente, reafirma e mitifica todos os seus feitos, reforçando o poder de sua ficção em toda a sua paradoxalidade atemporal. Night reforça a encenação de seu filme com toda a carga possível de artificialidade, em prol de uma falência inevitável, do diagnóstico final de um mundo atual, à mesma medida que paradoxalmente reafirma um apreço pelo imediato, pelo estímulo da descoberta, por um simples castelo de areia na praia, ou seja, atesta através disso tanto um comentário extra fílmico, como uma carta de amor a cada segundo filmado por ele. Com isso, o diretor pode até acabar perdendo as catarses puramente emocionais de filmes como Sinais ou A Dama na Água, mas por outro lado seu longa ganha peso como comentário sobre a própria existência do cinema shyamalaniano em tempos atuais. O diretor faz uma obra que funciona como uma ode à fabulação, à fantasia, e basicamente todo um ideal de cinema que ele vêm construindo, mas que também consegue dialogar com uma dimensão desesperançosa parcialmente inédita em toda a sua filmografia. Talvez seja o maior cineasta de nossos tempos justamente por isso: afirma e define um ideal cinematográfico que definha no “grande cinema”, ao passo que luta contra uma homogeneização que segue modelos em voga, supostamente esses modelos que caracterizariam os “grandes filmes” contemporâneos, ao mesmo tempo que Shyamalan anda contra tudo isso, o cineasta sempre tem o cuidado de levar sua obra um passo à frente, ao sempre desestabilizar alguma noção do espectador e elevar seu alcance artístico a um novo patamar, seja formalmente, tematicamente, ou o que quer que seja.



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