Duna: Voltando ao essencial


A extensa e complexa mitologia da obra de Frank Herbert poderia facilmente se tornar um empecilho para a adaptação cinematográfica de Duna, dirigida por um Denis Villeneuve que tem como trabalho anterior um exemplo bem ruim de como lidar com uma história de compridos desdobramentos narrativos e diversos elementos conflitantes. Seu Blade Runner 2049 dilui a abordagem de Ridley Scott em um esquema meramente aparente, se escondendo atrás de uma ambiguidade somente oportuna, e não possibilitadora. Os arranjos visuais de Villeneuve se traduziam em pretensos “grandes planos” que no final das contas apenas se isentam de qualquer objetividade na construção da mise-en-scène, quase como uma desculpa pra não lidar de fato com os componentes dispostos pelo Blade Runner anterior.


Aliás, esse tipo de crítica ao cinema do Villeneuve não é de hoje — e até certo ponto eu mesmo concordo — mas no caso da primeira parte de Duna as coisas mudam um pouco em termos de foco, já que, agora sim, Villeneuve instrumentaliza muito bem alguns apelos mais básicos da premissa do livro de Herbert em prol de uma objetividade dramática e visual que se alia muito bem às usuais pretensões do cineasta, mas dentro de uma chave mais certeira do que nunca. Se Blade Runner 2049 dava a sensação de um filme que não conseguia sustentar todos o mistérios e dilemas filosóficos na jornada de seu protagonista vivido por Ryan Gosling, aqui, a jornada de Paul Atreides soa retilínea e clara, ao mesmo tempo que em constante iminência de ebulição.


A maior qualidade do filme é dar um passo atrás em relação a todos os conceitos mitológicos e complexas questões políticas presentes no hard-sci fi de Frank Herbert. Todos os elementos estão ali, claro, mas o grande trunfo na abordagem de Villeneuve é se utilizar, para guiar todos os desdobramentos e fiapos narrativos, de preceitos mais básicos e universais presentes em qualquer história de fantasia com apreço por elementos mais arquetípicos na trajetória de seus personagens. Nesse sentido, Duna é um filme que abarca uma mitologia grandiosa e complexa sem parecer que está dando um passo maior que as pernas, um erro que seria de certa forma esperado, sobretudo no cenário de adaptações mainstream do cinema americano recente, que acabam em muitos casos sucumbindo à uma necessidade de fidelidade — aquele pensamento bobo de que o livro adaptado abarca mais “conteúdo”, logo é uma obra superior — em detrimento da experiência cinematográfica em si.


Villeneuve pode até ter tido esse cuidado com fidelidade (o crítico Marcelo Hessel, do Omelete, até aponta essa característica dentro de uma chave negativa em seu texto), mas pelo menos para mim o que sobra de fato é uma experiência cinematográfica bem segura de suas intenções, sobretudo enquanto imaginação visual de um universo. Portanto, como eu mencionei acima, Villeneuve utiliza muito bem alguns apelos mais imediatos da premissa — a trama de predestinação de Paul sendo o fio condutor mais essencial — para lidar com um foco dramático que, agora sim, busca um alvo e um senso claro de unidade. O foco não está apenas em registrar todos os acontecimentos do livro, mas fazer desse ponto de partida (a jornada de Paul rumo ao seu destino, sua construção arquetípica facilmente identificável) uma base para as disposições narrativas e estéticas do longa.


O filme não tem medo de verbalizar os seus conceitos narrativos mais pomposos, ao mesmo tempo que integra isso a um comprometimento com certa seriedade dramática. Não chega a ter um tom caricato, mas o longa de Villeneuve lida muito bem com alguns modelos mais manjados sem cair no mero pastiche. É notável a escolha por seguir percursos tão reconhecíveis e ainda se manter sóbrio com toda a abordagem. Coisas como a própria vilania do personagem de Stellan Skarsgård — que parece ter saído de algum Star Wars — ou o já supracitado arco de escolhido de Paul Atreides (o filme raramente perde a oportunidade de mencionar a vocação de Paul para se tornar o tal "the one") indicam uma relação muito mais aberta de Villeneuve com elementos dramáticos mais essenciais em que consegue, a partir destes, abrir caminhos mais do que possibilitadores. O cineasta não se esconde atrás de uma pretensa “complexidade ambígua e artística” — armadilha de vários outros cineastas contemporâneos, e em vários casos até do próprio Villeneuve —, mas incorpora toda uma maleabilidade de elementos clássicos, essencialmente fantásticos e universais, dentro de um modelo formal homogêneo, de uma forma autoral que diferencia seu filme de tantas outras obras similares aos quais o longa se filia, garantindo a Duna uma cadeira cativa no cenário atual de blockbusters.


Até as caracterizações imediatas da mitologia e dos personagens conseguem não se perder no fluxo de informação, mas se sobressaem por sua pontualidade. Novamente, Villeneuve opta pela objetividade ao invés de tentar ficar te jogando um monte de conceito para criar uma ilusão de profundidade ou algo assim (novamente, Blade Runner 2049). A "voz" das bene gesserit (novamente remete a Star Wars e o uso da força) ou até alguns elementos meio ridículos como o dente envenenador, determinante na morte de Duke Leto, são coisas que fazem parte de uma essência fantasiosa, uma que não se preocupa em soar austera, mas abraça uma graciosidade implícita naquelas operações. Villeneuve não mascara esses componentes mais abertamente graciosos, apenas os integra à sua encenação de maneira franca, assim potencializando todo um efeito de caracterização mitológica e poder imaginativo do universo. Novamente, é o gosto de Villeneuve por elementos pontuais e específicos que elucida toda a dimensão megalomaníaca que vai sendo colocada em perspectiva. É quase paradoxal em algum sentido, já que cada observação feita pelo cineasta, intui em sua minuciosidade todo um caráter imaginativo mais que possibilitador em suas aspirações.


E usando novamente o Blade Runner 2049 como ponto de comparação, se a jornada do personagem de Gosling ali se perdia dentro de uma não-definição somente oportuna, a jornada de Paul durante Duna tem uma meta — não no sentido determinista — mas de uma centralização dramática que se abre ainda mais para desestabilizar o percurso de seu protagonista. As inseguranças e toda a hesitação no personagem de Chalamet — créditos para o ator aliás, que banca demais o amontoado emocional de seu personagem — se contrastam muito bem com a percepção de uma noção de destino e predestinação que vai, gradativamente, ganhando luz à Paul. Até a própria relação dos sonhos do personagem vai criando uma ambiguidade interessante nesse sentido, sendo todo o ato final um dos momentos mais elucidativos disso. Aliás, todos os flashes mais poéticos dos sonhos (visões?) de Paul, principalmente os com a personagem da Zendaya, lidam muito bem com a dualidade que vai sendo trabalhada ao longo do filme. Mesmo a textura da imagem — que na tela de cinema de fato ganha um aspecto especial — contribui para um estado de alteração, de uma espécie de espaço-outro que é vivenciado por Paul. Parece que Villeneuve busca ainda mais uma ultra minuciosidade, somada a um aspecto lúdico essencialmente psicodélico, para criar o espaço mental difuso do personagem de Chalamet. A própria relação do filme entre o minimalista e o grandioso, que vai do plano detalhe de um bicho qualquer até os imensos planos de dunas e minhocas gigantes, diz muito sobre um filme que preserva franco interesse com diferentes dimensões e percepções daquela realidade.


Existe toda uma idealização clara do Paul com a Chani, uma coisa que remonta a, novamente, um arco romântico clássico, e que no momento em que os dois se encontram de fato existe uma certa quebra de expectativa com as meias palavras e toda a dinâmica já implícita ali. Claro que isso é algo que vai ser desenvolvido no futuro, já era de se esperar e também não ia fazer sentido se rolasse algo a mais que isso nesse primeiro momento, mas fica claro que o filme tem um gosto por esse choque entre lampejos de uma realidade aparente e o próprio enfrentamento dessa realidade dramática. O personagem do Momoa até diz algo nesse sentido em dado momento, quando Paul expõe as preocupações de que ele seria morto em batalha em Arrakis — o que no final das contas acaba acontecendo —, mas sempre dentro de um elemento desestabilizador que não vai exatamente para onde o filme te sugere em um primeiro momento. E voltando ao ato final, mesmo o sonho de Paul antes de batalha, em que o personagem contempla a própria morte, diz muito sobre isso, e talvez seja o momento mais evidente do filme de toda essa relação. Villeneuve cria toda a iminência do clímax, estabelece uma atmosfera épica que cai por terra quando nos deparamos com uma batalha crua e direta entre os dois personagens (os sons ofegantes dos personagens em batalha, assim como os sons do choque dos escudos que ambos personagens carregam conferem ao momento um tom ainda mais naturalista, consequentemente potencializando os dramas ali situados).


E dentro disso é muito interessante como é um filme essencialmente sobre o fracasso. É quase uma anti história de origem em algum sentido, já que o personagem do Chalamet começa no ponto mais alto possível e vai tendo que lidar tanto com esse sentimento de derrota iminente, de ver todas as relações que ele construiu a vida toda se desmoronando (as mortes de Duncan Idaho e Duke Leto) enquanto ao mesmo tempo encontra sua motivação final em Arrakis. É de uma ambiguidade que, agora assim, intui uma construção de personagem minuciosa e bastante possibilitadora dentro do cinema Villeneuviano. Até a despreocupação do filme em matar seus personagens responde muito a uma ideia de encenação que pode até responder a batidas convencionais de histórias épicas, e por isso consegue ser bastante eficiente (o que eu mencionei anteriormente sobre Villeneuve preservar uma certa essência arquetípica nas caracterizações imediatas da narrativa) mas também sabe a hora de progredir sem muitas cerimônias (a morte de Duncan Idaho é magnificada ao mesmo tempo que é anticlimática, nem vemos o corpo de Duke Leto após sua morte, o próprio pseudo clímax entre Paul e Jamis).


E novamente toda essa dimensão desoladora de morte e derrota, se por um lado de fato confronta toda uma relação de fugacidade e efemeridade, por outro atesta e abre caminhos para a emancipação de Paul rumo ao seu destino. A grande batalha interna de Villeneuve — e a coisa que deixa o filme interessante no final das contas — é a maneira com que o cineasta de fato assume essa indefinição. Nunca abre mão de uma graciosidade fantasiosa implícita para lidar com os elementos da encenação de forma sóbria. Está constantemente te “enganando” (no melhor dos sentidos) com as percepções de Paul em suas visões e o confrontamento da realidade dramática do longa. Existe de fato um comprometimento com uma visão formal, uma visão de cinema que o Villeneuve vem tentando lapidar até hoje (e pelo menos para mim aqui ele de fato consegue chegar em sua melhor forma) ao mesmo tempo que seu filme não recusa — pelo contrário até — se funda em uma base dramática bastante universal, que assume um tom lúdico implícito naquelas ações. Não sei se é um filme exatamente inocente, mas é o mais próximo que Villeneuve chega de certo despojamento.


















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