Paisagem em ruínas: adentrando o portal do paraíso

 

Inserido no contexto da Nova Hollywood, o cineasta Michael Cimino representa um ponto de ruptura no cinema americano, com seu primeiro longa, e dando continuidade em seus dois filmes seguintes. O diretor inaugura, talvez, uma espécie de separação desse cinema de suas raízes modernas ao mesmo tempo que, para isso, lance mão de iconografias dos grandes mestres. Cimino bebe de fontes evidentes de cineastas americanos, realiza composições que remetem diretamente a maneira com que John Ford, por exemplo, assimilava esteticamente os vastos exteriores de seus cenários para sintetizar um certo espírito americano calcado na contemplação. Por outro lado, existe nisso um ideal de subversão bem específico, que faz seus filmes não se limitarem ao simples jogo reverencial, mas demarcarem o ponto de ruptura supracitado: segundo os três filmes iniciais de Cimino, para subverter é necessário homenagear, e vice-versa. Capaz que seja justamente isso que torne Cimino o cineasta sublime que é. 


Já nos momentos iniciais de seu próprio longa, Thunderbolt and Lightfoot (1974), a ambiguidade conferida ao personagem de Clint Eastwood já denota a ambivalência moral que viria a ser desenvolvida ao longo do filme, e que, principalmente, serve como exemplificador de como Cimino remodela a seu modo alguns preceitos e iconografias dos Estados Unidos. Encontramos o personagem de Eastwood exercendo o papel de padre em uma igreja local, incorporando uma espécie de aura patriótica de valores supostamente puros, só para sermos revelados, momentos depois, todo o seu passado como malandro e experiente homem do crime. Logo, em uma sequência inicial rápida, Cimino já destila sua tônica geral: o mesmo personagem que assegurava valores intrínsecos a América é também o responsável por sua consequente perversão e dessacralização, através de um ciclo vicioso representado por identidades conflituosas.


O western moderno de Cimino, ao mesmo tempo que reverencia um valor iconográfico atemporal, uma noção visual tão cara ao passado cinematográfico do país, implementa um valor contemporâneo à narrativa, a partir do momento que assume em seu filme uma ideia de repolitização do espaço que nos remete a alguém como Michael Mann. Mesmo antes da carreira do diretor de “Fogo Contra Fogo” começar de vez, é interessante como o próprio Cimino já assimilava algumas maneiras de contemplar o espaço de cena que viriam a ser incorporadas também por Mann, principalmente na maneira que essas espaços vão sendo ressignificados de acordo com a agência dos personagens, e consequentemente, suas intenções políticas. Coisa que, invariavelmente, evidencia a dicotomia almejada por Cimino, ao ponto que suas escolhas formais desvirtuam, ou remodelam, algumas tradições através de novas abordagens, de uma reinvenção formal constante sempre atrelada ao seu conteúdo.

 

 

A contemplação espacial de Thunderbolt and Lightfoot

O ponto nevrálgico desse primeiro longa de Cimino reside no parceiro de Eastwood, vivido por Jeff Bridges. O personagem representa uma aptidão pelo desbravamento, a volúpia da juventude que transmuta-se em um valor americano também clássico e fundador, ou seja, a doutrina do destino manifesto, o solo americano enquanto um desafio a ser vencido, como um percurso a ser dominado. Bridges vai, de um jeito ou de outro ao longo do filme, sempre de encontro ao seu próprio destino derradeiro. Seja através de uma noção de acaso — em dado momento, próximo ao final do filme, os dois protagonistas simplesmente dão de cara com a escola que escondia o dinheiro a qual ambos almejavam na porção anterior do longa — seja através de esforços coletivos (toda a sequência do assalto) tudo representa a convergência desse destino último almejado pelo personagem de Bridges. Mas o motivo do personagem ser o grande centro do mote do filme é justamente a falência em suas aspirações: o fracasso no assalto evidencia o sonho americano como uma realidade inalcançável, a derrota como uma condição natural daquele mundo. Ele morre por uma consequência direta dessa derrota, indissociável de sua busca. Ao mesmo tempo que o espírito de renovação incorporado em Bridges é necessário ao filme do Cimino, o cineasta nunca deixa de reconhecer sua consequente efemeridade, sua impossibilidade enquanto estado natural das paisagens e das formas.


Se “Thunderbolt and Lightfoot" nada mais é do que um filme sobre a impossibilidade em meio ao espaço, dessa maldição contemporânea que assola personagens sem tempo e sem lugar, com as paisagens sendo ressignificadas por elementos próprios da encenação ciminiana, “The Deer Hunter”, longa seguinte do diretor, leva toda a meditação do cineasta sobre a paisagem americana até às últimas consequências. A montagem elíptica, absolutamente cara a Cimino aqui, propõe um trânsito constante entre as ambientações do filme: a guerra do Vietnam e o cenário idílico do cotidiano situado na cidade natal do protagonista, interpretado por Robert De Niro. A abordagem contemplativa de “Thunderbolt” dá lugar a um filme que elucida, também através dos espaços, uma arbitrariedade extrema. O grande mote do filme é como essas constantes idas e vindas entre os ambientes condicionam dramaticamente os personagens. O cineasta contrasta esses dois espaços para assumir uma ambiguidade definidora, sobretudo nas cenas de caça (o ápice da relação entre planos pictóricos e violência), mas que vai, pouco a pouco, contaminando uma dinâmica geral. Desse modo, as próprias apostas envolvendo a roleta russa, recorrentes no filme, acabam ganhando um valor simbólico: a morte - enquanto símbolo - urgindo no limiar de um corte ou de um contra-plano definidor, a bala no tambor da arma de Cimino é a própria manipulação da forma cinematográfica, que acaba ganhando uma autonomia poderosa. 

 

 

Vida e morte como maldições intrínsecas a encenação

 

Em 1980, a trilogia inicial de Cimino encontra o seu ápice em “Heaven’s Gate”. Das meditações sobre a conquista da paisagem e fracasso iminente em “Thunderbolt and Lightfoot”, até a gradativa contaminação do cotidiano através das elipses de “The Deer Hunter”, Cimino atinge aqui o seu maior nível de desprezo pela América. O que já existia em seus dois filmes anteriores, uma iconoclastia essencialmente contemporânea que se apropria de valores intrínsecos a sociedade americana -- a presunção da conquista no primeiro, a alteridade entre guerra e vida cotidiana no segundo -- aqui toma uma forma bruta sem mediações, um rigor burocrático que sacramenta seu mito fundador. Não é à toa que o filme marcou a morte da Nova Hollywood, por seu fracasso total de bilheteria e crítica; o público americano vomita sempre que precisa olhar o seu passado e presenciar o ideal sanguinário indissociável do surgimento do estado, e Cimino faz questão de encenar tudo do modo mais explícito possível - das mortes até uma tentativa de estupro. Não existem mais as mediações de gênero mais evidentes dos longas anteriores, que transitam facilmente entre o western e o filme de guerra, vão do road movie ao filme de assalto. É a América pelo o que ela representa de fato, onde os véus performáticos dão lugar a uma bruteza inconsequente.

 

Mesmo com isso, não deixa de ser um filme de reverências. Busca suspender os movimentos e gestos fordianos em um nível quase conceitual, enquanto constrói todo um jogo de obsessões ritualísticas ultra evocativas, que chega até a referências diretas a um cineasta como D. W. Griffith. Mas Cimino passeia pelas raízes da América, faz essa síntese do cinema americano clássico só para implodir nas tradições desse cinema. Leva o seu cinema de reverências até às últimas consequências porque entende que esse é o único jeito de reconhecer o inevitável fracasso do estado.


Kris Kristofferson, nosso protagonista e suposto herói e salvador, como é de se esperar em um filme épico desse porte, declara a desistência do papel que lhe tinha sido atribuído nos momentos finais do filme. Para o personagem de Christopher Walken, que completa o triângulo amoroso com Kristofferson e Isabelle Huppert, já era tarde demais no momento em que cria algum tipo de consciência, sucumbindo às suas próprias presunções. Seu dever e, consequentemente, instrumentalização em prol do estado americano só poderia resultar em morte. O amor idealizado com Huppert não pode ser alcançado.


As paisagens, que nos dois filmes anteriores de Cimino se apresentavam em um tom idílico, pelo menos em um primeiro momento, ou representavam um ideal etéreo que viria a ser ressignificado com a progressão dos filmes (a inútil busca pela conquista através das paisagens de Lightfoot, a atmosfera ultra ambígua nas montanhas de Deer Hunter) aqui se valem por elas mesmas: belas e que, ao mesmo tempo, representam uma nação em ruínas.


Provavelmente, junto com “O Homem que Matou o Facínora”, o filme que melhor define os EUA. Compreende uma construção processual absoluta em prol disso: a suspensão de cada gesto, de cada dança, de cada olhar, tudo torna ainda mais destruidor o ultimato de Cimino: a derrocada do estado acontece através de belas paisagens em ruínas. Mas diferente do filme do Ford, que tem a mitificação verbalizada ao final de seu filme, com a declaração para que se imprima a lenda, se encontra em Cimino enquanto encenação, enquanto mitificação desses gestos atemporais, de olhares que remontam ao mais elementar em cada uma daquelas relações. Mas o filme não almeja o progresso como, mesmo através de vias distintas, almejavam os personagens de John Wayne e James Stewart. Encontramos aí, portanto, o contraponto primordial de Cimino a Ford: o mito que funda o estado é justamente o mesmo que o destrói por dentro. 

 

 

 






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